12 dezembro 2025

joão pedro grabato dias / estou agora só no fim da avenida

  
 
Estou agora só no fim da avenida. Minha casa é aqui.
Sacudo a ligeira vertigem que me acode sempre que chego
Como um intruso que teme acordar a prata dos espelhos
e receia vê-la ondular, enrugar, nas pálpebras do fogo
paro, num fugaz pestanejo em que acendo um cigarro
e passo a ombreira para o visgo da solidão controlada.
 
Que fiz da minha raiva? Esgotei-a? onde estão, quais os culpados?
Onde esqueci (em que desvão, em que lavabo?) o alforge de enganos?
Todos vamos na culpa, como diria o Ioannes. Todos.
O nosso minúsculo e secreto maquinismo de masoquismo
ritmava o ofegar do sádico menor em cada esquina de tédio
todos álvaro de campos com imenso dó de si próprio
todos ceguinhos do acordéon do fado automático
uns mais e outros um pouco menos gozando a música do látego
cada um adiando, cada qual consentindo, todos indo na culpa…
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
uma meditação, 21 laurentinas e dois fabulários falhados, 1971
tinta da china
2021
 


11 dezembro 2025

luís miguel nava / o poema

  
 
É um arbusto, armados
ainda nele os últimos relâmpagos,
o poema.
 
A pedra cai no ventre
da água – a fruta poderosa, as páginas
onde a brancura se estilhaça, o lenço
como um relâmpago.
 
Os cães brilham ao alto
– são eles o arbusto
de imagens onde a força miúda
como um leão íris
a atravessa o poema encarcerado em sua própria imagem.
 
A pedra, digo, cai no ventre
da água como um punho
 
– agora está no fundo desta imagem.
 
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




 

10 dezembro 2025

eugénio de andrade / a mão no ombro

  
 
 
Como se tu alumiasses
ainda
cada degrau, cada palavra,
e a noite não fosse
a única porta estranhamente
branca,
eu subia sem conhecer o ombro
onde apoiava a mão.

 
 
eugénio de andrade
rente ao dizer
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

09 dezembro 2025

joão miguel fernandes jorge / eugénio de andrade ao descer belmonte

  
 
Os olhos, verde claro, envolviam a água e a vila.
Erguiam a linha da manhã,
levantam a âncora
na madrugada marítima e as velas
não deixam sombra na baía da serra – os olhos
a um tempo insolentes, divertidos e duros
arco num verde de carícia, ao longo
do mastro; no ar translúcido de quem desce de
Belmonte para o plaino de Caria. Os olhos
sobrepunham a um rumor de fundo – os remadores
ergueram a direitura do tronco, viram o verde
incessante, murmúrio contido de surpresa, grito
de saudação – quebrar da vaga.
À partida da serra, à entrada da barra
prendia-se um coração exposto ao vento
movia rostos vazios
 
por detrás ficara a cidade. Nas ruas e praças
o rapazio fazia-se à vela, navegava por entre o
cume dos montes: um grupo de homens atravessa na
Cordoaria, o que restou do jardim – onde ficou
Belmonte? – com uma expressão de
destroço fala grosseiramente. Era
por demais manhã, os remadores estendiam o braço e
retesavam o remo
apontaram o barco na direcção do mar.
 
Nas casas, as mulheres passam o vinho pela vela,
                                       pano de serapilheira.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




08 dezembro 2025

joaquim manuel magalhães / prosa


 

UM
 
Devemos ir pelos versos muitas vezes, fixá-los fora dos modos usuais aos actores cobertos de adereços, representar nas palavras as fugidias imagens, os vazios dos sons adormecem nas fogueiras, a mudante linguagem vem como as aranhas pelos revoltos mercados dos homens, tudo seco, a seiva entre a areia e das flores. Antes de os destinos estarem nomeados, o corpo escuro e o claro dos astros dançam a tua mão, muda, muda, ludibria a negra encantação, as estrelas vês como flutuam no pão diário, no sal esmagado das comidas, no dinheiro com que compras coisas? Estende-te com elas sobre a cama, pousa num peito a brilhante boca, estão à espera que digas o destino até te despedires. Transformados na terra leva-nos o ar pelas maiores derivas para tornarmos esquecidos a um novo corpo de suplícios e não sabemos onde. As fogueiras acesas no largo de teatro devem aquecer no escuro o teu corpo vigilante. As sombras das árvores dançam-te à roda e nas mãos estendidas passa o fumo. O teu corpo está sozinho, desconhece quem o imagina de roupas grossas, a barba por fazer avermelhada por um fogo. Podiam defender-te o peito do frio de janeiro, acertar-te o cinto com os braços, viria ver-te um gato pelo muro, as névoas da boca subiriam com o fumo no areão molhado do orvalhos. Tens esta casa para repousar, jogar, deixar a roupa suja. Com as palavras destes versos atraio os planetas ao teu curso, os corpos benfazejos que não vês e vais sentindo enquanto representas. Esta qualidade que tenta aproximar-se dos desígnios arrasta sobre o corpo rios, lagos, aves de verão, vegetações. Vêm os mortos sobre o mar que são os vivos do futuro escutar-te. Não deixes que parta o fogo ou se avizinhe. Transformam este texto numa víbora para te morder.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
antónio palolo
na regra do jogo
1978
 



 

07 dezembro 2025

ruy belo / na noite de madrid

  
 
                                     para o João Miguel Fernandes Jorge

 
 
Na noite de Madrid eu vi um homem morto
Jazia ali como uma afronta para os vivos
que voltavam dos bares com música nos olhos
com estrelas na testa e festa nos ouvidos
e passavam de táxi a boa velocidade
Há quanto tempo o homem jazeria ali
à superfície escura do asfalto
já meio devolvido à terra nossa mãe?
Não o cobria o manto dos heróis
nenhum clarim tocara em sua honra
Como o confortaria a santa madre igreja?
Tombara apenas imolado ao dia-a-dia
Pagara com a vida a paz da consciência
de toda uma cidade que dormia
E ele crescia alastrava na estrada
e assumia inesperadas proporções
quando há bem pouco ainda se reduzia ao dia
Quem seria? Quem fora?
Que jornal conteria a imensidão do nome
de quem como um insulto ali jazia?
Que pensamentos próximos tivera?
E o que levaria ele nos bolsos?
Donde viria? Sorriria? Onde ia?
Fora criança? Sonharia ser feliz?
Mudaria de vida na manhã seguinte?
Brincara alguma vez naquela mesma rua?
Fora criança ali onde profundamente o vi?
Teria soluções para problemas que tivesse?
Seria porventura um bom chefe de família?
Disporia da consideração da vizinhança?
Era bom funcionário? Homem de futuro?
Mas já naquele momento o rosto lhe cobriam
pois não conseguiria ver nem as estrelas
nem ao menos a luz dos citadinos candeeiros
Havia curiosos e polícia havia uma ambulância inútil
para quem como cama só teria a pedra fria
«Aonde vai?» - perguntou-me o homem do táxi
«- Eu tenho cinco mil pesetas - respondi-lhe
Leve-me pelas ruas da cidade até nascer o sol
talvez ele possa dizer-me alguma coisa
daquelas muitas coisas que gostava de saber
(o sol é hoje uma das minhas poucas soluções)
Passe longe do corpo por favor»
Lembrei-me de leituras soterradas
de súbito subiram-me à memória cenas esquecidas
Samaritano eu? Mais um levita
que calmo procurava a promessa do dia
Inquietação ou pena? Sombra de metafísica?
Política? Moral? Lição? Comportamento?
Queria alguma coisa? Não sabia
Posso-vos garantir que não sabia
Só sabia que olhava e nenhum mar havia
 
 
                            Póvoa de Varzim, à vista do mar, 10 horas da manhã
                                                                do dia 29 de Dezembro de 1971

 
 
ruy belo
dispersos
todos os poemas III
assírio & alvim
2004




06 dezembro 2025

álvaro de campos / sim, está tudo certo.

  
 
Sim, está tudo certo.
Está tudo perfeitamente certo.
O pior é que está tudo errado.
Bem sei que esta casa é pintada de cinzento
Bem sei qual é o número desta casa —
Não sei, mas poderei saber, como está avaliada
Nessas oficinas de impostos que existem para isto —
Bem sei, bem sei...
Mas o pior é que há almas lá dentro
E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar
A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pode evitar
Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada...
Mas, está claro, está tudo certo...
E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...
 
5-3-1935
 
 
álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




05 dezembro 2025

vasco graça moura / a sombria beleza do tema

  
 
«a sombria beleza do tema
da estação e da morte» diz o Kundera algures.
nesta imagem desenha-se um olival perdido
de surdas tonalidades, atrás do cais de onde
 
se despenhou alguém, alguma forma
aflita e trágica, vinda do fundo súbito de uma
paisagem tão modesta, sob as vozes
de quem chega a quem parte, ou simplesmente foi ali para olhar
outros seres de passagem, outros rasos destinos sem anjo para o
     remorso.
há flores, dirás, algumas flores diurnas, confiantes,
que outras mãos hão-de dispor na jarra, relembrada
junto à parede branca, mas essas são um ténue
 
sopro de acaso, ou um fulgor antecipando outra nudez.
quando a luz já se tornou mais húmida e quase musical,
e através da folhagem a harpa do desgaste estremeceu,
e passaram as horas e passaram
 
pesadas, contadas, divididas, já não dói
a beleza de alguém que vai partir, a sombria beleza
da sua ocultação intransmissível, uma brisa leve misturar-se-á
ao cheiro de óleo, aos acenos afectuosos, aos
 
ruídos do tema da estação. é tudo. à noite o olival
será uma massa negra de clareiras adiadas,
atrás do cais sem ninguém e sem tempo, como sempre acontece
nas pequenas estações de uma província da alma.
 
 
 
vasco graça moura
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 



04 dezembro 2025

benjamin péret / mistério do meu nascimento

  
E quando eu lhe respondi 19
ele respondeu-me 19
22 se tens tempo para ser rico
30 e 40 para a comédia em três tempos
50 para a porcaria do teu aniversário
100 para as comodidades da primavera
Quanto ao resto sou pálido e hipnótico
mas trate da sua calçada caro doutor
e deixe à água clara a hipótese de se tornar água suja
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023




 

03 dezembro 2025

arthur rimbaud / um sonho para o inverno

  
 
                                                          Para ***Ela.
 


Este Inverno partiremos num pequeno vagão rosa
          Com almofadas azuis.
Que acolhedor. Espera-nos um ninho de beijos loucos
          Em cada recanto macio.
 
Fecharás os olhos para não veres pela janela
          As carrancas das sombras da noite,
Essas monstruosidades enraivecidas, chusma
          De demónios negros e de lobos negros.
 
Depois, sentirás a bochecha arranhada…
Um beijo ao d eleve, como uma aranha tonta,
          Descer-te-á pelo pescoço…
 
Então dir-me-ás: «Procura!», inclinando a cabeça:
–  E levaremos muito tempo à procura do insecto
       - Que tanto viaja…
 
 
Na carruagem, 7 de Outubro de 70

 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018




 

02 dezembro 2025

domingos da mota / soneto da pouquidão


 
 
São poucos os que lutam contra o medo
sem medo de perder seja o que for,
que ousam libertar-se do enredo
desse modo maligno de temor
que sofreia a coragem ante o susto
e que a tantos concita mais pavor
e os deixa tolhidos, dado o custo
da luta contra o medo sem temor.
São poucos os que lutam e a escassez
aumenta com tamanha pouquidão
que faz acumular, por sua vez
o medo, com razão ou sem razão
naqueles que se escondem dia a dia
por detrás do receio ou da apatia.
 
 
 
domingos da mota
tempestade seca
associação dos jornalistas e
homens de letras do porto
2025



 

01 dezembro 2025

herberto helder / comunicação académica

  
 
                    A minha posição é esta: toda as coisas que pare-
                    cem possuir uma identidade individual são apenas
                    ilhas, projecções de um continente submarino, e
                    não possuem contornos reais.
 
                                                                  Charles Fort
 
 
 
Gato dormindo debaixo de um pimenteiro: gato amarelo folhas verdíssimas pimentos vermelhos: sono redondo: sombras pequenas de pimentos vermelhos no sono do gato: folhas sombrias dentro do amarelo: pimentos dormindo num gato vermelho: verdes redondos no sono do pimenteiro: o amarelo: da cabeça do gato nascem pimentos verdíssimos de sono: sono vermelho: sombras amarelas no gato redondo de sono verdíssimo debaixo de um pimenteiro amarelo: a sombra do gato dando folhas redondas sonhando amarelo sobre dormindo os pimentos: água: secura sombria do gato vermelho: o sonho da água dorme no pimenteiro: a sombra da cal das paredes secas dorme no gato de água amarela: a cal dá pimentos que sonham nas folhas do gato: o sono da cal dá sombras redondas no gato enrolado no vermelho: a água é uma sombra o gato é uma folha o sono é um pimenteiro: a cal é o verdíssimo do sono seco dando sombra no amarelo: pimenteiro redondo: pimentos de cal enrolados no sonho do silêncio amarelo: o silêncio dá gatos que sonham pimentos que dão sono na cal que dá sombra nas folhas que dão água na secura do tempo vermelho: o tempo enrola-se debaixo da cabeça do pimenteiro que se enrola no gato de cal do sono amarelo: o sono de dentro dos pimentos debaixo do redondo verdíssimo enrolado no sonho: e dorme o pimenteiro com as sombras do gato redondo enrolando-se nas folhas: silêncio de sonho sono de tempo: tudo amarelo: noite do pimenteiro sono da cal folhas do gato sonho das sombras do verdíssimo vermelho: secura da noite: noite do gato na noite da cal com a noite das folhas dentro da noite do verdíssimo debaixo da noite do sonho diante da noite do pimenteiro após a noite da água conforme a noite debaixo com a noite enrolada contra a noite do amarelo desde a noite das sombras consoante a noite redonda para a noite de dentro durante a noite do vermelho detrás da noite dos tempos debaixo da noite sem à frente do com da noite conforme a noite conforme: a noite dos tempos: um gato de dentro desaparecendo num pimenteiro: pimenteiro desaparecendo: a cal morrendo no sonho das folhas pequenas: o silêncio de tudo no mundo inteiro:
 
 
   etceteramente vosso inteiro:
 
                                             herberto herder:
 
                                                                     em janeiro
 
   mil novecentos e sessenta e três
 
                                                                                                                                                                                                                                 1963
 

 
herberto helder
poesia toda
comunicação acadérmica
assírio & alvim
1996





30 novembro 2025

vergílio ferreira / todas as épocas…

  
 
303 – Todas as épocas têm uma palavra que resume e centraliza o que nela mais significa. Nós não temos nenhuma a não ser em negativo. Talvez «desagregação». Porque tudo o que é visível e sensível só diz não a tudo. O nosso vocabulário reduziu-se porque muitos vocábulos deixaram de servir. Amor, decoro, honestidade, honradez, seriedade, fidelidade, recato, decência. Opostamente, os vocábulos mais obscenos deixaram de ferir os ouvidos mais delicados. E não apenas os que se soltam em situações agressivas, mas mesmo em conversas normais e até em títulos de livros como um romance. O que é curioso é que nesses restos de reserva ou pudicícia não se dizem em voz alta esses títulos expostos numa livraria. Assim, se alguém os quer comprar não os pede pelo nome mas por outras formas de o referir como por exemplo apontando-os com o dedo ou apresentando-os simplesmente nas livrarias para o pagamento. Sempre existiram os palavrões, mas não expostos à publicidade e sim lidos com recato. Mas hoje vale tudo porque nada vale nada. incluindo a própria vida que tosos os dias se assassina numa vulgar bulha de facas. E não são precisas razões, que dão trabalho a descobrir ou seja a inventar. Basta faca.
 
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001