28 outubro 2025

rui costa / o homem azul

  
 
Há muito que tento escrever um poema
sobre o canteiro de um homem azul no labor
das mãos. O homem seria cego porque a visão
não facultaria o modo de selecionar os minerais ou
a resistência das proteínas à fúria das ideias trazidas
pelo vento. Na verdade, as mãos deste homem não seriam
mãos como as de outros animais – dos corvos, por exemplo –
capazes de ouvir, do fundo intuído da sua genética
consciência, mesmo aqueles pequenos actos que ainda não
aconteceram. O homem azul já aprendeu, aliás, que cada
tentativa de despojamento traz consigo mais um
camião de areia
que acaba por ser demasiado sólida perante o orgulho das
pétalas mais breves.
Quando alguém volta a cabeça para baixo o céu começa
a duvidar e então, diz o azul do mundo, a planta que precisa
de atenção vê o bafo ainda quente do homem azul.
 
 
 
rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





 

27 outubro 2025

ruy belo / em cima de meus dias

  
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
Regresso com o gado contra o sol rasante
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome?
 
Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo
com um olho vazado transpareço o meu passado
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou
além dessa medida simples onde me vasou
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr-do-sol pode mudar
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece
 
Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar
 
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
 
É de manhã caminho nem meus passos oiço
oitenta passos diz-se que darei
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários
Duvido de mim próprio: quem serei?
O carro rega coisas tão profundas como esta
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz?
Eu estive em Dinard e vou talvez casar
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004





26 outubro 2025

rui knopfli / o velho

  
 
Não envelheço. Torno-me antigo.
O velho sempre viveu em mim,
sempre o pressenti no olhar
magoado demorando-se nas coisas,
em certa lentidão não premeditada
dos gestos e nas lembranças confusas
de uma outra recuada idade.
Sempre aflorou na mão e na estima
triste que se estende aos amigos,
na aresta de desconsolo que espreita
as minhas horas de amor.
O velho sempre viveu em mim.
Eis que, enfim, o reboco
se lhe começa a assemelhar.
 
 
 
rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



25 outubro 2025

marta navarro; paola d´agostino / dos meus quartos de hotel

  
 
 
Dos meus quartos de hotel
relembro os objectos que fui deixando para trás
Em Granada um chapéu-de-chuva grená
em sítio incerto um soutien branco
em Andorra um gorro lilás
em Lyon a travessa de prata da avó
Lista cacofónica com que pretendia deixar a minha marca
uma forma antecipada de inscrição na pedra
e a aprendizagem lenta do desapego
 
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014




 

24 outubro 2025

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 

 
9.
 
Devia ter sido o último poema do ano.
Um sino na paisagem a marcar
as horas. Um desalinho momentâneo
como uma arritmia, demasiado breve
para ser sombra, não ousando ser
árvore para que nenhum pássaro
ali pouse e seja música.
 
Chegando sempre tarde,
é o primeiro, e nele ressoa
a enumeração de todos
os elementos que nos circundam
mas que, por inabilidade
semântica ou biológica,
são sempre distância.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022








23 outubro 2025

paulo campos dos reis / a empregada do café



 

 
A empregada disse olá
acordando-me da distância.
Com a condescendência justa
para quem, como eu
ocupou a mesa
para não beber café.
 
O que deseja, disse.
Pergunta bonita.
Um café, respondi.
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022
 




 

22 outubro 2025

sebastião belfort cerqueira / sexto poema sobre o mar

 


 

 
Quando eu morrer
Deitem-me as cinzas
Quais cinzas
Deitem-me inteiro ao rio
E deixem-me seguir
O trilho frio
Até ao mar
 
Quando eu morrer
E me acharem na margem
Só vos peço um empurrão ligeiro
 
Depois vou a boiar
Como um pau
 
Vou a dormir
Como uma pedra
 
Para encravar
A engrenagem do maior cargueiro.
 
 
 
sebastião belfort cerqueira
está um dia lindo
edições sempre-em-pé
2021
 




21 outubro 2025

joão miguel fernandes jorge / e tu perguntas

  
 
E tu perguntas
fechando o corpo e a casa
o que fazemos aqui
como saímos daqui?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






20 outubro 2025

egito gonçalves / outubro

  
 
Os mortos esperam o frio de Novembro
enquanto as pétalas dos crisântemos se vão definindo
neste meio de Outubro, hereditariamente mortiço.
Os mortos estão esperando! Os cardíacos, os fuzilados,
os arrogantes, os tuberculosos, os suicidas
estão esperando as sus flores, o seu pretexto
para se imporem ao coração dos existentes
e manejarem a saudade como um látego,
rasgando a carne dos joelhos que amaram.
É a hora de nos ditarem a contemplação de pequenos objectos
sepultados no fundo de gavetas incómodas…
é a hora de se transformarem em flechas
e apresentarem os retratos fidelíssimos
para serem salgados de lágrimas veementes.
Ridículo oferecer-lhes um passeio no rio,
constelações em marcha, conferências sobre o sexo,
magazines ilustrados, foguetes luminosos…
o choro é essencial; Novembro não esquece,
reforça os seus pilares, não tardará a erguer-se.
Com os relógios quebrados contra o tempo
os mortos aguardam embrulhados nas horas que não têm,
enquanto as pétalas dos crisântemos já se torcem, disformes,
como a dor que depositaremos sobre os túmulos.
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020





 

19 outubro 2025

ángél gonzález / o outono atravessava

  
 
O Outono atravessava
as colinas de frágeis
tremores. Cada
folha caída
fazia estremecer uma montanha.
 
Leve rumor de luzes e de brisas
rolava pelo vale, aproximava-se.
Os pássaros deixavam bruscamente
trémulos os ramos
caindo rumo ao céu, arrebatados
por uma força estranha.
 
As carnosas urtigas
comprimiam-se
como um rebanho
inquieto. Levantavam da água
a cabeça, os juncos.
As verdinegras silvas
cresciam.
Imperceptíveis, mais delgadas
pela tensa postura de quem espera,
as ervas, desejantes…
                                        E tu chegavas,
e uma amarelenta paz de folhas caídas
refazia o silêncio atrás de ti.
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



18 outubro 2025

josé saramago / até ao fim do mundo

  
 
É tempo já, Inês, o mundo acaba
Em que amor foi possível e urgente;
A promessa talhada nessa pedra,
Ou é cumprida hoje, ou tudo mente.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018




17 outubro 2025

josé gomes ferreira / melodia

  
 
II
Há anos de raiva
que te busco em vão.
Melodia!
 
No sopro dos meus versos,
nas fontes com sede,
nas portas que rangem,
na cólera do mar aberto…
 
Mas quem te ouve, Melodia,
para além do contorno do silêncio?
 
Pobre voz que trago em mim
e há-de morrer ignorada
nas trevas sum sol profundo
sem luas de superfície.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972




16 outubro 2025

jorge luís borges / a luís de camões

  
 
Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heroicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Pra com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o  fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998