29 julho 2025

manuel de castro / a voz quase silêncio

  
vai-se perdendo a voz quase silêncio
um corpo agora oco     gasto     frio
a morte é uma cor que foi escolhida
para encontrar a direcção do vento
 
o homem que foi um feto      que foi um peixe
que foi o ar     que foi o sangue e o gesto
atravessa o mar com círculos nos braços
possuído no seu próprio destino
na descoberta dos focos submarinos
 
ao nível das estrelas mais brilhantes
e no entanto desde há muito extintas
pode encontrar-se o grande amor final
pesar-se no seu som e qualidade
 
garganta de alcatrão fundente
vai-se perdendo a voz, quase silêncio
 
                 do livro «A estrela rutilante» (1960)
 
 
 
manuel de castro
antologia da novíssima poesia português
m. alberta menéres, e. m. de melo e castro
moraes editora
1971
 


28 julho 2025

nuno guimarães / o quarto

  
[…]
O ar que, dentro dos pulmões, circula
altera-se. É o mesmo das imagens,
denso; as árvores, o ferro, o seu vapor
de enxofre: os dias mortos – de atenção
 
e gasto perceptivo. E onde pôr,
agora, a exacta dimensão? Na mão
cremada, no fogo imensurável?
Medir-se com imagens, breves
 
desvios da matéria? A régua jaz
sobre a madeira, a cama, outras mobílias
inexactas à vista – todo o real
oscila no seu leito. Ou haverá,
 
porém, outro rigor: visível, táctil,
um rasto de paisagem, de sentidos?
então, já póstumo e alheio,
o que descreve, neutro, ainda brilha.
 
 
 
nuno guimarães
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 


27 julho 2025

bernardo soares / a renúncia é a libertação. não querer é poder.

  
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
 
 
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
 
 
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com (o) olhar.
 
 
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas — o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana — o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios — todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo... Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
 
 
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
 
s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




26 julho 2025

mário de sá-carneiro / pied-de-nez

  
 
Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado –
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas…
 
O Erro sempre a rir-me em destrambelho –
Falso mistério, mas que não se abrange…
De antigo armário que agoirento range,
Minh’ alma actual o esverdinhado espelho…
 
Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido –
E, entretanto, foram de violetas,
 
Deram-me beijos sem os ter pedido…
Mas como sempre, ao fim – bandeiras pretas,
Tômbolas falsas, carrossel partido…
 
                          Paris – Novembro de 1915
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007





 

25 julho 2025

pedro tamen / o vinho

  
1.
 
Isso de que gostámos tanto; impulso
sem que o fim, que dizem tão preciso,
se notasse; um beijo pela troca; pedra
no chão ainda; um rasgão no mais duro,
onde os corpos se abatem; um padre.
 
Demos? não demos? Porque aparece agora
esta questão de medo? – Um rio, meu amor,
um rio tem o sul… – Demos? não demos?
 
Dissemos amanhã sem o mais leve riso.
Um nervo porque sim caiu de lá no raso
dos amores. Tocámos os sinos, nós tocámos
os sinos. Vejam as nuvens (barcos, ananases…),
vejam os seios livres no sereno das noites.
 
Um rio, meu amor, um rio tem o sul,
que é onde é cor de casa a planta dos pés…
 
 
 
pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995




 

24 julho 2025

pedro oom / poema



 

 
Tua boca
é um dia estreito
cheio de moscas
 
De noite
tem a cor azul-verde
dum veneno
como o mar.
 
 
pedro oom
actuação escrita
& etc
1980




 

23 julho 2025

jorge de sousa braga / foz

  
Com água no bico
aves marinhas combatem
o incêndio do crepúsculo
 
 
 
 
Sete da manhã
O sol acorda
com olheiras enormes
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



22 julho 2025

josé miguel silva / salão de beleza

  
 
Dorida visão, esta pobre velha à saída
do salão de beleza. apesar dos muitos
e pesados passos que deixou na terra,
ainda encontra forças para arrastar a alma
até ao reverso de um espelho e desenhar,
de memória, o contorno dos lábios,
armar o cabelo para mais uma ilusão.
Admirável a tenacidade das ervas
que à enxurrada opõem a verdura
de um grito e resistem à lição de Marco
Aurélio, ao prolongado cerco da realidade.
Admiráveis porque vestem de gala
para mais uma dança, já solitária,
num baile de fantasmas, todo mental,
sem darem crédito à melancolia
nem ouvidos ao tirânico juízo da crua,
da falsa, da estúpida carreta fúnebre.
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




21 julho 2025

manuel de freitas / quando sós à boleia do crepúsculo

  
                [para o Fernando Guerreiro]

                         
Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
– julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.
 
E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.
 
E isso que – talvez – nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).
 
Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002





20 julho 2025

leopoldo maría panero / um louco tocado pela maldição do céu

  
 
Um louco tocado pela maldição do céu
canta humilhado a uma esquina
as suas canções falam de anjos e coisas
que custam a vida ao olho humano
a vida apodrece aos seus pés como uma rosa
e já perto do túmulo, passa junto dele
uma Princesa.
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




19 julho 2025

víctor botas / tentativas de felicidade

  
 
As páginas de um livro de Baroja
à sombra de uma árvore
no verão.
Um poema de Octávio Paz, de Larkin, de Pessoa
ou do meu amigo d’Ors,
na cama de um comboio Madrid-Paris.
A jovem que percorre
a manhã e as ruas, com as ondas
retumbando nos seus olhos.
Os meus filhos na praia de Salinas, tão felizes,
brincando com a areia.
A rosa solitária que se ilumina,
húmida e temerária,
num jardim qualquer da tarde.
O curioso olhar dos velhos.
O brilho da Lua.
Todas estas coisas podem ser motivo de inusual felicidade.
Todas estas coisas podem ser a tua cruz e o teu calvário.
Todas estas coisas podem ser a armadilha em que cais de bruços.
Todas estas coisas podem inclusivamente não ser nada.
Nada de nada, irmão.
 
 
 
víctor botas
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997


18 julho 2025

joão miguel fernandes jorge / neste silêncio

  

 
Neste silêncio.
 
Vês esta ruína
tempo em que plantámos cinzentos agapantos
e amámos esta música de pinheiros
esta companhia das coisas?
 
Olha
quase colina
não respira
salta no pensamento a outra coisa,
 
Ensina-me.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019



17 julho 2025

antónio maria lisboa / sinalização ossificada

  
 
A aranha-termómetro mergulhou no peso do meu nome
e deixou que ele falasse gota a gota:
 
«---- O sexo-limbo é um composto sobrevivente… etc., etc.»
Daí tirei conclusões que tudo me permitem:
 
___ A borracha-centopeia furada ao lado pela parede–
–telefone
a invenção dum novo dialecto para falar às formigas
a auto-fixação dum purificador nos buracos do vento
uma complicação perfeita para
objectivada em gesso morder o cio na boca… etc., etc.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995